O controlo da alimentação em doentes hipocoagulados é essencial. Damos a conhecer dos alimentos com possibilidade de interação com os anticoagulantes orais.
De acordo com a Associação Portuguesa de Nutrição, estima-se que em Portugal, no ano de 2015, as doenças cardiovasculares tenham sido a principal causa de mortalidade 1.
Para fazer face a esta realidade, o recurso a anticoagulantes tem sido utilizado como estratégia preventiva e espera-se que esta tendência se mantenha nos próximos anos. Isto porque a maioria dos eventos cérebro-cardiovasculares se associam ao desenvolvimento de trombos a nível venoso, arterial ou cardíaco.
A monitorização do estado de coagulação, especialmente na introdução de novos fármacos, alimentos e/ou suplementos alimentares, torna-se essencial na prevenção de possíveis consequências nocivas como resultado das interações fármacos-alimentos.
Doentes hipocoagulados: cuidados a ter com a alimentação
Há determinados alimentos que os doentes hipocoagulados devem consumir com moderação – em especial aqueles mais ricos em vitamina K – uma vez que diminuem o efeito dos anticoagulantes orais (ACO) indiretos. Recorde-se que os mais comuns são a Varfine® (Varfarina) eo Sintrom® (Acenocumarol).
Por que razão se deve consumir moderadamente alimentos com vitamina K?
A vitamina K é uma vitamina lipossolúvel essencial para a produção de várias proteínas envolvidas na coagulação. Atua como cofator no que conduz à ativação dos fatores de coagulação II (protrombina), VII, IX e X e consequentemente da cascata de coagulação 2.
Para além da regulação no processo de coagulação, tem ainda um papel importante na fixação de cálcio nos ossos e dentes, limita a calcificação vascular e participa na produção dos lípidos constituintes das bainhas de mielina no cérebro, com potencial papel na génese das doenças neurodegenerativas.
Embora a sua carência em humanos seja rara – salvo casos de má absorção de lípidos e/ou depleção da flora intestinal após utilização crónica de antibióticos -, um défice de vitamina K pode provocar hemorragias, anemia grave e até morte 3.
Existem 3 formas distintas de vitamina K :
- Filoquinonas (K1): presentes naturalmente em hortícolas de folha verde e óleos vegetais;
- Menaquinonas (K2): sintetizadas pela flora intestinal e/ou naturalmente presente em alimentos como ovos, manteiga, banha e produtos fermentados (p.ex. keffir e nattõ);
- Menadiona (K3): compostos sintéticos na forma de provitamina, posteriormente convertido em menaquinona no fígado.
Fontes alimentares de vitamina K
As maiores fontes de Vitamina K são 4,5:
- hortícolas de folha verde escura (acelga, agrião, espinafres, couve galega, couve kale, endívias, couve de bruxelas, nabiças e brócolos em crú);
- óleos vegetais (óleo de soja, óleo de canola, óleo vegetal, óleo de algodão, azeite);
- casca de alguns frutos (pinhão, caju, kiwi, amora, abacate);
- outros alimentos (miso, natto, bife de vitela, panados de frango).
A quantidade de vitamina K nos hortícolas pode variar de acordo com alguns fatores, nomeadamente: sazonalidade, grau de frescura e de maturação, grau de pigmentação, condições climatéricas, bem como condições de preparação e confeção (demolhar legumes e vegetais antes de cozinhar e eliminar a água de cozedura reduz substancialmente os valores de vitamina K1) 6.
A vitamina K e as interações medicamento-alimento
As interações medicamento-alimento podem ter impacto na forma e velocidade como o fármaco é absorvido, metabolizado e excretado, potenciando significativamente a ineficácia de qualquer terapêutica.
Uma vez que os anticoagulantes orais indiretos bloqueiam a regeneração da Vitamina K, quer uma redução, quer um aumento no seu consumo poderá causar alterações no estado de coagulação 7.
Uma vez que o consumo de vitamina K apresenta vários benefícios, no caso de doentes hipocoagulados, deve assegurar-se o seu aporte constante ao longo do tempo, evitando grandes flutuações que possam comprometer a eficácia da terapêutica 8,9,10.
O objetivo será estabelecer uma ingestão habitual deste micronutriente e definir, após a estabilização, qual a dose de anticoagulantes orais que deverá ser mantida, de forma a prevenir oscilações no INR (International Normalized Ratio) e o ajuste constante do anticoagulantes orais 11.
Alimentação em doentes hipocoagulados: questões que importa responder
E a vitamina E? É aconselhável?
A vitamina E é uma vitamina lipossolúvel com um efeito anticoagulante, podendo anular o efeito da Vitamina K e interferir com os anticoagulantes orais indiretos. Uma ingestão de vitamina E, sob a forma de suplementação (> 1,000 UI) pode, por isso, aumentar o risco de hemorragias 12.
Proteína: consumir de forma equilibrada
A distribuição de qualquer fármaco no organismo está dependente da sua ligação às proteínas transportadoras (albumina).
No caso das dietas pobres em proteína e/ou doenças do fígado – em que se verifica diminuição do teor sérico de albumina -, a quantidade de fármaco livre é maior, aumentando o INR e consequentemente o risco de hemorragias.
Pelo contrário, o aumento da concentração de albumina sérica, decorrente de uma dieta hiperproteica faz com que haja uma menor quantidade de fármaco livre, e, como tal, uma diminuição o INR que se traduz em risco aumentando o de formação de trombos.
Torna-se então essencial manter o equilíbrio na ingestão proteica durante o tratamento com anticoagulantes orais indiretos de forma a minimizar as interações 13.
Bebidas alcoólicas aumentam o risco de hemorragias
O consumo agudo de bebidas alcoólicas aumenta o risco de hemorragias uma vez que interfere com o metabolismo hepático dos anticoagulantes orais indiretos. Por outro lado, o consumo crónico e excessivo de bebidas alcoólicas potencia o metabolismo dos anticoagulantes orais indiretos contribuindo para o risco de formação de trombos.
O consumo de bebidas alcoólicas nestes casos deve ser pontual e moderado (1 copo de apróx. 150 mL por dia para as mulheres e dois copos de apróx. 150 mL por dia para os homens). Nestes casos, não se verificam quaisquer interações significativas com o metabolismo dos anticoagulantes orais 14.
E as plantas medicinais?
Algumas plantas medicinais influenciam o metabolismo hepático dos anticoagulantes orais indiretos, bem como a forma como são distribuídos e excretados. Entre as que potenciam o efeito anticoagulante estão a camomila, ginseng, Garra do diabo, Tanaceto, Dong Quai, Feno Grego, Gingko Biloba, Serenoa e Âmio-maior. Plantas medicinais como o Ginseng, chá verde e Hipericão reduzem o efeito anticoagulante 14.
Conclusão
O maior cuidado alimentar a ter em doentes hipocoagulados é monitorizar a quantidade total da vitamina K ingerida de forma a evitar flutuações marcadas dos marcadores de coagulação sanguínea INR e ajustes constantes na medicação.
Não sendo forçosamente obrigatório deixar de ingerir qualquer alimento, também não se preconiza a restrição da vitamina K na dieta.
O importante, como referido, é garantir que os grandes dadores de vitamina K sejam consumidos de forma regular, em quantidades semanais aproximadas, de forma a criar um ponto de equilíbrio fármaco-alimento que permita a eficácia e segurança da terapêutica.
Além da manutenção da ingestão diária de vitamina K, recomenda-se:
- Utilizar a menor quantidade possível de gordura na confeção dos alimentos;
- Evitar o consumo de produtos industrializados à base de óleos (molhos, sopas pré-confecionadas, caldos concentrados, entre outros);
- Utilizar preferencialmente queijos e geleias em detrimento de manteigas e margarinas;
- Remover a casca da fruta e hortícolas.
Em caso de dúvida, consulte o seu médico assistente e/ou nutricionista clínico que o orientarão nos procedimentos a seguir em cada caso.
+ Fontes
- Programa Nacional para as Doenças Cérebro-Cardiovasculares. (2017) Disponível em: https://www.dgs.pt/portal-da-estatistica-da-saude/diretorio-de-informacao/diretorio-de-informacao/por-serie-892489-pdf.aspx?v=11736b14-73e6-4b34-a8e8-d22502108547
- Palta S, et.al (2014). Overview of the coagulation system. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/25535411
- Grottke O, et.al (2015). Perioperatively acquired disorders of coagulation. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbr/v46n6/07.pdf
- S. Department of Agriculture. USDA National Nutrient Database for Standard Reference: Agricultural Research Service. (2015). Disponível em: https://ndb.nal.usda.gov/ndb/nutrients/index.
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- DiNicolantonio JJ, et.al. (2015). The health benefits of vitamin K. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/26468402
- Klack K, Carvalho JFd. (2006). Vitamina K: metabolismo, fontes e interação com o anticoagulante varfarina. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s0482-50042006000600007&script=sci_abstract&tlng=pt
- Institute of Medicine. Dietary reference intakes for vitamin A, vitamin K, arsenic, boron, chromium, copper, iodine, iron, manganese, molybdenum, nickel, silicon, vanadium, and zinc. (2002). Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/25057538
- Kampouraki E, Kamali F. (2017). Dietary implications for patients receiving long-term oral anticoagulation therapy for treatment and prevention of thromboembolic disease. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28635328
- National Institutes of Health Clinical Center Drug-Nutrient Interaction Task Force. Important information to know when you are taking: Warfarin (Coumadin) and Vitamin K. (2011). Disponível em: https://ods.od.nih.gov/factsheets/vitamink-healthprofessional/
- Phang M, at.al. (2011). Diet and thrombosis risk: nutrients for prevention of thrombotic disease. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/21455854
- Nutescu EA, et.al. (2006). Warfarin and its interactions with foods, herbs and other dietary supplements. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16610971
- Sigma Pharmaceuticals. Dietary guidelines and drug-herb interactions for people taking Warfarin. (2005) Disponível em: https://academic.oup.com/ajhp/article-abstract/62/10/1062/5134361